terça-feira, janeiro 31, 2006
delírios da criança velha em pano branco numa noite sem lua ; 7:08 da tarde
Desci devagarinho as escadas de madeira. Ri nervosamente. Dois passinhos, três passinhos, uma boneca afogada num lago.
Estendi a mão e eras tu.
Duas pinceladas, pano branco, tela. Brinquedos histéricos de crianças crescidas. Ri outra vez, baixinho para não acordarem. O senhor de branco pegou-me na mão, anda comigo doçura.
Lá se foi a cabeça do senhor de branco.
Tinta vermelha por todo o lado. Confusão, confusão, dois passinhos escada abaixo. Olha para trás, doçura, de quem sãos os dois olhos brilhantes? Um quarto grande, tão bonito o quarto grande.
Brilhante.
Olha um gatinho. O gatinho mau roubou uma sardinha da cozinha. O cozinheiro está zangado. O que é que o cozinheiro zangado vai fazer ao gatinho ladrão? Mau Maria, mau Maria.
Eu não digo nada. Chiu.
Esconde os olhos com as mãos, menina bonita, para não te verem. Devagarinho, chiu, escada abaixo.
Brilhante, o metal aguçado. Parece prata, tão lindo. Cuidado, é afiado. Uma gotinha vermelha no pano branco.
Chiu, não acordem.
Três passinhos escada abaixo, menina bonita.
Fecha os olhos e boa noite.
o homem louco e a tela de brincar - que era prima da tela a sério ; 7:04 da tarde
[Oldie. Just some more apples lying around]
Era um vidro quebrado no meio do chão. Porque a Alice passou para o outro lado do espelho e não voltou. Nunca voltou.
Temos pena, Alice.
O ratinho saltitão encontrou o seu caminho até à ratoeira, por entre pedaços de queijo francês. Estava bolorento, o queijo. E o ratinho morreu. Porque é sempre o rato a morrer nestas histórias.
O pequeno príncipe deu um beijinho à princesa e foram os dois caçar rãs, por entre sedas cor-de-rosa e renda inglesa. E o cavalo branco, regalia de todos os príncipes, seguiu-os devagar, olhos fechados para não ver o caminho.
E o gato sorriu.
E em algum momento, não antevejo bem qual, tudo isto se tocou naquilo que foi o quadro nunca pintado pelo homem louco. E todos sorriem, no quadro. Todos o pintam e todos sorriem.
Menos o homem louco.
O homem louco segura o pincel e não sorri. Pinta traços furiosos na brancura colorida da peça.
E não sorri.
Os lábios murmuram um nome que não existe já. E o pincel abranda. Pega na tela e atira-a ao fogo.
O homem louco sai de casa e senta-se debaixo de uma macieira.
Pega numa maçã e dá uma dentada.
E fecha os olhos.
E sorri.
segunda-feira, janeiro 30, 2006
tricksters ; 7:09 da tarde
És o meu segredo.
Ela ri-se e observa divertida, mordaz, cruel. Um balde de pipocas e uma coca-cola.
Maçãs.
Jogos e apostas e catarse.
Duas Senhoras debruçam-se da varanda e fecham os olhos. Dão dois dedos de conversa, coscuvilhices divinas aos cantos das janelas: velhas alcoviteiras sem mais que fazer.
Perdão. Belas, as Senhoras. Pena de corvo e mármore esculpida.
Sem coração.
Jogos e piadas e humor negro. Partidas omnipotentes, fantoches com cordas demasiado curtas.
Pequenas tentações.
Perdes o teu tempo, lua, vai brincar para outro lado.
Este palco está vazio.
A bailarina morreu. Resta agora apenas o chão, destituído e manchado.
Uma caixa de sapatos com memórias dentro. Contas, bocadinhos de vidro e cartas velhas.
Uma rainha de madeira numa casinha de brincar.
sete bagos de romã (excerto) ; 7:00 da tarde
[A rarity. The only post of the (very) short lived second edition of even death may die]
Vejo ainda o meu olhar preso na respiração dela.
Sombras no rosto dela, sombras a dançar no rosto dela. A luz da lua no rosto dela, dois fios de cabelo.
Foste a soma de tudo aquilo que eu admiro na humanidade. Ofereci-te o céu, esquilo, e tu aceitaste porque me fazia feliz. E fazia-te a ti, por defeito, feliz.
Tristemente ridículo e incrivelmente estúpido.
E enfurecia-te que assim fosse. Alguma vez te disse como ficas bonita quando estás zangada? Demasiado doce, esquilo, demasiado doce para seres como nós.
Sem coração.
E não te enganes, nunca o tive. Podia dizer que te amei, e se pudesse amar alguém ter-te-ia amado a ti. Mas nunca amei ninguém. Não estou certo de possuir tal capacidade. Não que me importe. Se tivesse uma consciência ter-me-ia decerto importado, mas tal não é o caso.
E que importa, afinal?
Ninguém pode perseguir fados opostos e alcançar ambos. Não podias desejar ser como nós ao mesmo tempo que desejavas ser feliz. Porque nós não procuramos a felicidade, esquilo. Somos loucos e poetas e os loucos e poetas não procuram a felicidade.
Não de verdade.
Actores num palco sem tela, perdemos o texto algures nos bastidores e improvisamos com descaramento, sorriso trocista dirigido à audiência.
E eles amam-nos, como podem não nos amar? É a eles próprios que vêm quando nos olham.
Não escolheste o teu lugar, esquilo, continuas com um pé no palco e outro na plateia. Um oferece-te os aplausos; o outro, o espectáculo.
E tu quere-los ambos, actriz armada em prima donna.
Ninguém pode amar algo tão desesperada, tão apaixonadamente, que nada mais importe. Nem tu, esquilo, nem tu. Amores assim só existem nos livros, em livros que não este.
Um amor maldito, uma morte antes de tempo e a glória eterna. Mexe tudo e leva ao forno. Pois sim, batam todos palmas no descer da cortina.
Porque não é real.
Porque podia ser.
Porque não é.
domingo, janeiro 29, 2006
o caos como origem divina ; 7:35 da tarde
[Another oldie]
O caos é o pai de todos os deuses.
Todos o adoram e veneram, porque nele nasceram e a ele regressam no findar do desejo. Por isso os deuses não são bons nem maus, mas tudo isso e um pouco mais. Os deuses são o absoluto.
O caos é o pai da poesia.
Toda a poesia nasce no caos e toda a poesia a ele regressa na volta do verso. E por isso a poesia é gentil e cruel ao mesmo tempo. E por isso a amamos.
O caos é o pai da prosa.
Nele se inventa e nele encontra a ordem. Por isso a prosa é vulgar e profana. Por isso cabe debaixo do tapete ou dentro do alguidar.
O caos é o pai da noite e por isso todos os gatos são pardos. Por isso todas as estrelas caem até não haver nenhuma.
O caos é o pai do dom e da queda. E por isso todos os anjos perdem as asas, no findar da noite.
O caos é o regresso e o rodopio, o fechar os olhos e o esquecer.
Nada há no caos senão o tumulto e o aconchego.
Nada há no caos senão a neve.
Nada há no caos senão o manto.
sete bagos de romã (excerto) ; 7:27 da tarde
Olá lua.
Uma aranha teceu uma teia até à lua, por onde subiu uma vaca. Muito de mansinho, para não partir a teia.
Mas quando estava quase a chegar lá acima, e porque a teia era muito inclinada, começou a deslizar para trás, muito depressa. E veio parar ao chão. E a aranha disse bem feita, que as teias não são para vacas lá andarem.
Uma menina estava no chão a fazer um puzzle que contava a história da vaca, da aranha e da lua. E quando muitos anos depois a menina morreu, quando já não era uma menina, o puzzle ficou no chão do quarto.
E as portas e janelas da casa foram entaipadas por tijolos ciumentos. E a hera cobriu as paredes, comendo devagarinho a cal. E os bichinhos que ficaram lá dentro começaram a comer a madeira das escadas, e começaram a ficar gordos.
Gordos e lambões.
Na rua as pessoas passavam e lá estava a casa, velha e a cair, palácio encantado de uma princesinha há muito morta, casebre decadente de uma bruxa velha esquartejada por um príncipe, e quarto encantado do puzzle mágico no chão do quarto.
E vaca malhada a subir a teia, e aranha medrosa a olhar de baixo, e lua branca a olhar de cima.
E as pessoas passam e lá continua a casa, bela e a cair, bela porque a cair, doce e saudosa lá continua a casa, lá continua a casa, lá continua a casa.
E lá continuam os bichos.
E lá continua o puzzle. O puzzle e a aranha. Lá continua a aranha. Aranha. Teia. Escadas e bichos. Varandas cegas para a rua. Um cão a ladrar na casa ao lado.
Uma menina morta entaipada nas paredes, morta, nas paredes, a vaguear pela casa que lá está quando as pessoas passam.
A casa das pessoas que passam. A casa das pessoas. A casa da menina e o quarto do puzzle. E uma vaca e uma aranha e uma lua.
E a lua.
E hera a subir pela lua acima.
Hera na lua.
E a casa.
E o puzzle.
sábado, janeiro 28, 2006
história do espelho que morreu envenenado por uma maçã ; 10:45 da tarde
[An oldie, from the original even death may die. I love it]Três artistas em palco, no cinema mudo.
Gesto, gesto, passo. Grita a donzela em perigo, som que não passou de intenção, gesto e tela. Flores vermelhas, no cenário branco.
Sangue sobre seda, Branca-de-Neve morta no caixão.
Os anões choraram, mas foi porque assim estava escrito que fariam. E na realidade ganhou o Espelho, entidade eterna na parede. Mesmo quebrado ali jaz o espelho, para sempre nos versos da história.
Espelho meu, espelho meu.
E até aqui vemos a maçã. Para a mais bela. Sempre para a mais bela. Branca-de-Neve, morta no caixão, ou Afrodite num trono de prata.
E a Rainha sorri, bela e rancorosa. E não morre no fim. Não realmente. Apenas assim nos fizeram crer. Mas não. Não mesmo.
E ainda bem.
Pois a Rainha é a única personagem verdadeira. É a única pessoa da história. E dela a maçã.
E se algures nestes meandros há uma serpente, a ela o pó da terra. Assim está escrito.
E ela ri-se do que está escrito. Não sabe ler. E se soubesse mais se riria de tamanho absurdo. E aconchega-se docemente nos braços do Anjo, e observa deus por entre as pálpebras semi-cerradas.
E a Senhora colhe uma maçã, no Jardim.
E atira-a lá para baixo.
Para a mais bela.
Back On-Line ; 8:51 da tarde
So I'm back on-line which probably means I'm bored or in serious need of commitment to a mental facility.
Also I'm typing wearing mittens 'cause it's bloody freezing. Thus I hope all will be kind enough to forgive any typos.
As you all can see, Even Death May Die has a new skin. That is not due, as some may think, to my inconstant Gemini temper but to some wacky bug in the original skin which I was unable to fix. Well, to hell with that.
I don't really know how long the blog will last. Hell, if it's anything like the last time I brought it back, it won't live until tomorrow. Still, for however long, it's good to be back. I'll probably post some of the old texts again when I'm too lazy to write some new ones, or just because I really like them.
Whichever the case, thanks for reading;).
sancie